As manhãs de nevoeiro são bonitas.
Em especial aquelas entre Dezembro e Janeiro, com frio, luz suspeita e iluminação duvidosa, essas tornam-se conscientemente sedutoras e envolvem-nos naquele manto de algodão gasoso que torna as estradas místicas e nos dá a sensação de estar a caminhar rumo ao vazio.
Será essa uma prenda da natureza aos homens?
Será essa a resposta a tantas preces, pedidos deveras sentidos que encostam o homem aos beirais do pensamento sonhador?
Não. É simplesmente nevoeiro. Não vale a pena pores-te já com fabulações e recriações de cenários biblícos, porque na verdade nevoeiro é apenas nevoeiro, chuva é apenas chuva, e por aí fora.
Mas é bonito...
Pois é.
E queres com isso dizer que todas as coisas bonitas têm de ter explicação?
Não têm, não devem sequer ter que ter, para não perderem parte dessa mesma beleza.
Há na vida momentos para apreciar, momentos para questionar, momentos para indagar e muito especialmente momentos para contemplar.
E na contemplação reside parte do sumo espremido para o copo do encantamento.
E é o encantamento que me traz ao que aqui me trouxe.
1 ano. Passou exactamente 1 ano, e parece que foi há tão pouco, mas ao mesmo tempo a tanto.
É estranho pensar num sem o outro, estranho conceber a realidade, é bem mais simples entender a ideia.
O meu carácter transformou-se muito devido a si, a tudo o que bebi dessa fonte inesgotável de verdades formativas, de conhecimentos adquiridos, de sentido de justiça, de trabalho, de missão, de obra, de estratégia, cálculo, conselhos, orientações, e sobretudo nessa fonte inesgotável de vida, de resistência, de luta, de capacidade de regeneração, abnegação, sobrevivência, nome, olhar a direito, pensar mais longe, que se traduziam numa FONTE INESGOTÁVEL DE VIDA!
Muito me admiram as grandes obras, as grandes resistências, as grandes ideias, os grandes e mais altos pensamentos, mas espantava-me a capacidade que tinha em racionalizar os factos e sintetizar os procedimentos, ao caminho único e possível a seguir.
Era de ficar com o sangue gelado e envergonhado dentro das veias, com vergonha de correr, com a verdade que transbordava pelos seus olhos, a emoção nas palavras duras e muitas vezes revoltadas e dirigidas ao centro da fúria, a injustiça, a desonestidade, a mentira.
Era um pouco como ter acesso a um daqueles clássicos da literatura que figuram em colecções privadas, a que poucos têm acesso, e poder devorar com o olhar, toda a autenticidade do que temos diante dos humildes olhos que gravam tudo o que vêem com precisão cinematográfica.
Costumava sair daquela magnífica e tão significativa casa, com a sensação de que tinha estado numa espécie de câmara intemporal, onde o mundo parava e eu simplesmente tinha a oportunidade de conversar durante o tempo (este sim aquele normal, o verdadeiro, dos relógios) que quisesse, sem que ninguém me cobrasse nada por isso, só porque me apetece, sem ter de dividir essa mesma oportunidade com ninguém, era meu e por isso me sabia tão bem.
E de facto foram vários anos de conversas, de ensinamentos, palavras sábias, perguntas, histórias, personagens, a moral de cada uma sempre melhor e mais certa do que a anterior, hoje percebo que feito de forma intencional, consciente, adequando-as aos conselhos que eu procurava sem pedir.
Faz hoje 1 ano. E as palavras continuam a aparecer-me na cabeça, os olhos, a expressão, o sorriso, a lágrima, a dor, a vontade, o passo largo, as mãos, aquelas mãos...
Saudades. Sou mesmo assim, um saudosista, e então? Reflexo da entrega e da paixão, com que amam os olhos.
Tenho saudades dos anos que passaram antes do ano que hoje faz. Tenho saudades e a elas volto, aos sítios, aos olhos, às mãos, às palavras, vejo tudo, gosto de olhar para trás.
Gosto de me lembrar de calçar os chinelos em pequeno, e andava com eles em casa, enquanto não chegava, já em pequeno queria na verdade calçar os seus sapatos, ver o que via, saber o que sabia, havia em si uma espécie de magia silenciosa, que rodeava os gestos, o caminhar, o tom da voz, era uma coisa muito boa de se sentir em miúdo.
Já crescido eram conversas longas, eu sabia que sempre que ia ter consigo, não poderia haver compromissos para depois, só seus, nunca meus, porque a conversa era mais valiosa que qualquer outra possível naquele preciso momento, e é impossível, mesmo para o esquecimento, fazer esquecer algo assim, e fazer produzir nessas horas, poucas outras expressões para além de sorrisos, ou esgares, e abanar assertivamente a cabeça, sem nunca perder de vista as mãos, aquelas mãos.
Para mim eram as mãos de alguém que sempre considerei um ser superior, à própria normal e banal condição da maioria das pessoas com quem contactamos na nossa vida.
Eram as mãos do meu AVÔ e isso é tudo.
Tenho pena do futuro, porque não chegou a tempo de o conhecer, dos meus filhos que também não chegaram a tempo, dos sonhos e das ideias, mas... é mesmo assim.
Sei que está feliz e está por perto, e isso é certo.
Obrigado.
Obrigado pelas palavras que ouvi e gravei, que aprendi, usei e ensinei, pelas vezes que me disse o que havia a ser dito, o que tinha de ser escrito, fosse mais ou menos bonito, era o que havia a dizer.
E não consigo não sorrir ao ver o enquadramento cénico da coisa.
Sala, ponta da mesa, diagonal taçada ora entre a esquerda, ora entre a direita, olhos nos olhos, olhos nas mãos e nos olhos, nas mãos. E depois o tempo que ficava a pensar quando dali saia, e só hoje vejo o funcionar daquilo, de tudo aquilo que me dizia. E só está a começar. É isto que O avô é. Um ensinamento de vida, um marco, uma referência, não só uma, mas várias, conto duas, pelo menos, três, quem sabe? Talvez.
Vão marcar-me para todo e mais qualquer bocado de sempre, vão estar comigo nas horas de aperto, como já estiveram, vão servir de luz, quando a escuridão por vezes me cerca, e vão sobretudo ser citadas, vezes e vezes sem conta. O que conta é a conta que não faço, nos dias de cansaço, ao tempo que não passou, porque me cansaço de contar as coisas boas, todas elas que por aqui deixou.
Está frio, e um sólido e espesso nevoeiro, recordas-te de qual é o dia de que te recordas primeiro?
Recordarei sempre tudo por inteiro.
Quero acordar e ser quem sou, crescer e mostrar, dizer e contar, que na vida não há mais quem ganhe ou perca, mas sim quem vive e aproveita, e quem assim não vive, faz a cama onde se deita.
Gosto de acordar e de a olhar assim, meio desfeita, mas no fundo sorrio sempre ao vê-la ali, e porquê? Porque mais logo, sei bem quem nela se deita.
Do nome se fará herança, AVÔ. Daqui, do NOME se fará herança!
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