4 de setembro de 2013

A ferro e fogo

São 14h30 e preparo-me para ir almoçar.

Mais um dia que não um dia como todos os outros.

Liguei a televisão para saber como vai o “meu” país, como vai o mundo em que vivo, na esperança de estar um pouco melhor do que quando me deitei há umas horas.

Rapidamente descubro que não, que está pior, que continuam a querer acabar com tudo isto, que continuam a querer pegar fogo a tudo o que é verde, que morreu mais um bombeiro.

Os bombeiros deviam ter vida eterna, ou mil vidas, como nos jogos de computador.

Deviam cair e levantar-se, deviam ter super-poderes capazes de, em situações extremas, apagar as chamas que os cercam com um sopro intenso e gelado, como tinha o super-homem, ou então serem capazes de voar para fora do local de perigo, resgatar colegas em apuros, subir alto nos céus para ver a direcção do fogo, encontrar a lagoa, a boca-de-incêndio mais próxima mas não, não podem, não têm, não voam e não sopram com a frieza gélida dos polos.

Têm, tinham pouco mais de 20 anos, todos eles.
E aqui entra a parte em que digo que todos eles, sem excepção, são, eram bombeiros voluntários, que vão, foram combater no pior dos cenários de guerra, o inferno escaldante e tantas vezes criminoso de um incêndio de apetite voraz e insaciável, que se alastra a uma velocidade vertiginosa e descontrolada contra a qual é impossível combater de forma justa e capaz.

E há alguma possibilidade de se falar de justiça quando um bombeiro, voluntário, foi combater o fogo para longe de sua casa, da sua família, dos amigos, da escola, da vida que tem, tinha e que deixou para salvar casas de pessoas que nunca viu, com quem nunca falou, para se colocar entre os bens dos outros e a violência atroz de um gigante esfomeado e sem estômago nem maneiras, que destrói tudo à sua passagem sem sequer olhar para trás.

Miranda do Douro, Covilhã, Tondela e Caramulo.

São já, foram já cinco os “soldados da paz” caçados pelo monstro.

Não deixa de ser curioso que ser bombeiro seja uma das profissões de sonho do imaginário dos meninos pequeninos, juntamente com os astronautas, os pilotos de carros e os jogadores de futebol.

Será que o ser humano tem todo ele uma inata atracção pelo fogo?

Quando somos meninos pequeninos não temos a noção das políticas e da falta delas, não fazemos ideia que existem matas sujas e muito menos nos passa pela “pinha” que existem animais capazes de pegar fogo a matas, florestas, casas, carros, só porque sim, só porque estão muito tristes e revoltados com a vida, porque foram traídos, porque se “entornam” dia sim, dia sim, para esquecer que não prestam, que são más pessoas, má rês, má gente, que há muito se desviaram do caminho que conduz à meritória e honorífica possibilidade de ser designado como ser humano, que a única coisa em que pensam reside no mal que possam ser capazes de fazer, da dor que consigam infligir, ou do terror que almejam causar.

Mentes pérfidas. 

Soldados da destruição e do horror sustentados no mais puro egoísmo digno de uma mente retorcida e solitária.

Cátia Pereira Dias, Carregal do Sal.
Bernardo Figueiredo, Estoril.
Ana Rita Pereira, Alcabideche.
António Nuno Ferreira, Miranda do Douro.
Pedro Rodrigues, Covilhã.

Ficam-lhes os nomes, as façanhas, as saudades e a dor nas entranhas dos que os vêem, viram partir.

Num país ligado às máquinas, que apoio têm estes homens?

Que apoio vão ter as famílias destes meninos e meninas que não quiseram ser astronautas, nem jogadores de futebol, antes preferiram alistar-se numa corporação de bombeiros para irem morrer longe de casa no mês em que o país vai de férias.

Novos demais para morrerem às mãos de um assassino impiedoso que não olha nos olhos nem olha para o inestimável rastro de destruição e dor que vai semeando à sua passagem.

Os bombeiros continuam a pedir esmolas nos semáforos de Lisboa, esmolas, nos cafés das aldeias, nos hospitais e tantos outros sítios com sinais, cruzamentos ou afins.

Continuam a realizar as quermesses e os bailaricos, a vender rifas e imperiais e apoiar freguesias e eventos municipais, a tirar gatos dos telhados, a abrir portas e a aturar alucinados e a troco de quê?

Paz aos soldados que “tombaram” perante a violência de um inimigo mercenário.

Justiça a quem todos os anos, com a coerência de um aniversário, combate o monstro, com a bravura medieval de um cavaleiro de escudo e espada, com a certeza de ter como certo, pouco, ou quase nada.


(Texto publicado no site do jornal Público a 03/09/2013) - http://p3.publico.pt/cultura/filmes/9186/ferro-e-fogo



1 comentário:

João Fernandes disse...

A sua escrita enche-me a alma.
Forte mas sensível.
Agressiva mas comovente.
Provocativa mas consciente.

Parabéns e continue a maravilhar-nos!

[já agora, sugiro-lhe uma visita ao meu alagardere.blogspot.pt]